Reforma é agrado ao mercado, diz Valente

O deputado federal Ivan Valente, integrante do grupo mais à esquerda do PT, diz que a proposta de reforma previdenciária apresentada até aqui pelo governo é uma tentativa de agradar ao mercado, interessado nos fundos de Previdência complementar que seriam criados com a instituição de um teto para aposentadorias.
Valente afirma que a discussão política deve ser centrada nos movimentos sociais organizados e no Congresso, e não no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que vê como um fórum com tendência conservadora. "Eu não quero valorizar esse conselho como um instrumento que dá rumos e direção", afirma.
Valente pode ser definido como um moderado entre os radicais. Defende que as divergências das alas à esquerda no PT com os rumos da política econômica devem ser "qualitativas", centradas no conteúdo político. Mas também diz que punições "para solucionar conflitos políticos nunca funcionaram em nenhum partido".

Folha - Como o sr. avalia as manifestações recentes de integrantes da esquerda do PT, como a do deputado Babá (PT-PA), que disse que não confiava no ministro Palocci "nem como médico"?
Ivan Valente - Acho que temos que centrar a discussão no PT em cima de propostas políticas. As divergências precisam aflorar em cima da discussão qualitativa. Em cima do conteúdo, do projeto que está sendo implementado de política econômica, do projeto da Pevidência.

Folha - A forma como eles conduziram a crítica pode atrapalhar a estratégia da esquerda do partido?
Valente - Não quero entrar nesse mérito. Acho que o campo da esquerda do partido deve se manifestar, porque o que está em debate são os rumos do governo. Rumos que repercutem sobre a vida de todos, do partido e do próprio governo. É por isso que eu tenho insistido para a gente calibrar a crítica, e do outro lado, na direção do partido, permitir a fluência do debate.

Folha - O que o sr. pensa do encaminhamento da reforma da Previdência pelo governo, eleita como a reforma prioritária?
Valente - Colocar a reforma da Previdência como uma agenda prioritária foi uma pressão da mídia e do mercado. Acho até que a cúpula do governo já está revendo essa posição, tanto que apareceu o debate da reforma tributária. A questão central hoje é saber qual é o modelo econômico que vai ser implementado: se vamos ter um modelo que distribui renda, gera emprego, desenvolve o país e fortalece a presença do Estado. Esse é o ponto central. Podemos discutir uma reforma da Previdência, mas não do ponto de vista do ajuste fiscal. O ponto de partida para o debate tem que ser a proteção social. Devemos fazer com que todos os brasileiros possam ter o direito de se aposentar. Devemos evitar a ideologização do debate, a satanização do servidor público e procurar informações confiáveis. Evitar a manipulação de informações, particularmente sobre a questão do déficit da Previdência. É preciso visualizar que, numa reforma da Previdência, uma solução mais definitiva não está tanto na resposta aos benefícios. Não é porque aumentaram os benefícios [que a Previdência apresenta déficit". É porque caiu a contribuição e este país teve duas décadas perdidas de crescimento. O incremento de contribuições foi muito baixo: 40% dos trabalhadores estão na informalidade e 20% estão desempregados. Com isso, a única forma que se vê para responder ao déficit da Previdência é criar uma "Previdência dos pobres", com um teto de cerca de R$ 1.500, e fazer uma complementar para quem quiser. A Previdência complementar é estimulada largamente pelo mercado. Eles não querem uma Previdência pública, mas privada.

Folha - O funcionalismo está sendo satanizado no modo como a reforma está sendo colocada?
Valente - Certamente. A contribuição do servidor público se dá sobre o conjunto do seu salário, não sobre um teto de R$ 1.500 Os 11% que ele contribui a vida toda... As pessoas ficam pensando que não, que ele contribui sobre o mesmo teto do INSS. Essa informação é omitida na maioria das discussões. Além disso, se você faz a reforma do ponto de vista do mercado, a tendência é, num primeiro momento, aumentar o déficit da Previdência. Você passa a não contar com essas pessoas que contribuíram. Há uma ideologia de mercado achando que nós vamos resolver o déficit imediatamente, o que não é real.

Folha - Mas o governo coloca a questão exatamente sob esse ponto de vista que o sr. atribui ao mercado.
Valente - O governo não deve assumir essa prioridade que o mercado e o FMI querem impor à reforma.

Folha - Por que o governo está apresentando a proposta sob essa ótica?
Valente - Acredito que todos estão bem intencionados. Mas a lógica que foi implementada pelos condutores da política econômica é que é necessário dar um choque de confiança ao mercado. Frente à gravidade da herança do governo Fernando Henrique Cardoso, a lógica deles é criar expectativas positivas. Tem coerência então a política de aumentar os juros, mesmo quando o mercado não pressiona, aumentar o superávit primário, mesmo quando o acordo com o FMI fala em 3,75%, independência do Banco Central e privatização dos bancos estaduais que ainda existem. Com isso se pretende criar uma expectativa positiva. Daqui a um tempo se poderia desconectar do modelo. Mas o que está acontecendo agora é aprofundar o modelo.

Folha - Está equivocado o governo?
Valente - Está equivocado. Porque o mercado não tem racionalidade, é irracional e especulativo por natureza. Tem uma lógica de lucro, e nós temos uma lógica de desenvolver um projeto nacional. A lógica do governo se baseia numa "lei de murphy": se tudo der certo, vai dar certo, mas sempre vai ter um fator que vai atrapalhar. Ou é a guerra no Iraque ou a crise na Venezuela ou, agora, o aumento da inflação. O nosso governo tem que fazer, desde já, não grandes rupturas porque não há correlação de forças para isso, mas sinalizações de que não vai se submeter a todas as vontades do mercado.

Folha - O governo constituiu o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, fórum de debate das reformas, com metade de empresários. O sr. diria que as chances são de que a "proposta do mercado" permaneça?
Valente - O conselho é um órgão consultivo, não tem poder deliberativo. É mais um órgão de consulta, mas onde as questões vão acontecer de fato é na sociedade organizada e no Congresso Nacional, que terá que decidir por uma mudança ou não. Eu não quero valorizar esse conselho como um instrumento que dá rumos e direção.

Folha - Por sua composição, o sr. acha que o conselho pode dificultar a guinada à esquerda que o sr. deseja?
Valente - Se você forma um conselho que tem uma maioria de empresários, é natural que ele tenha uma tendência mais conservadora. Mas como acho que esse conselho não deve ter poder de fato, é preciso tomar inclusive cuidado para que não apareça com legitimidade para se sobrepor ao conjunto do movimento social organizado e mais ainda ao Congresso.

Folha - Existe esse risco?
Valente - Certamente. Se não for feito com habilidade, pode-se causar confusões e conflitos. Quem tem legitimidade para fazer movimentação política é o conjunto do movimento social e quem tem condição de votar são os representantes eleitos.

Folha - Caso o governo apresente a proposta de reforma da Previdência, tal como discutida até agora, como será a reação dentro do PT?
Valente - Certamente vai ser uma proposta conflitiva. Vai checar a identidade do PT com os trabalhadores. Os partidos conservadores apoiariam uma reforma com esse teto, previdência complementar privada, única, e assim por diante. Vai causar uma necessidade de definições mais agudas, na base social que elegeu o Lula e na sua própria base parlamentar. Como isso vai se desenrolar, ainda não dá pra dizer.

Folha - Mas enfrentaria resistências dentro do PT?
Valente - Certamente. Disso não tenho dúvida. Me refiro à base parlamentar e à base militante.

Folha - O sr. acha que a esquerda do partido está isolada?
Valente - A esquerda tem uma co-responsabilidade nesse governo. Esse é o nosso governo. Quando fazemos críticas agudas é porque nos sentimos responsáveis. Não acredito no isolamento, mas na capacidade de convencimento pelos argumentos.

Folha - O que o sr. pensa da possibilidade de repreensão de parlamentares do partido, como o deputado Babá, por sua declaração sobre o ministro Palocci, pedida por integrantes da ala majoritária?
Valente - A esquerda deve centrar as críticas no conteúdo. Por outro lado, medidas administrativas para solucionar conflitos políticos nunca funcionaram em nenhum partido.

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