Ao golpear os servidores desmonta-se o Estado

Tenho recebido farto material sobre a falácia montada para oferecer de mão beijada uma clientela de primeira aos bancos que controlam a previdência privada. Por onde quer que se olhe, fica claro que o golpe contra a aposentadoria integral dos servidores públicos é apenas um ardil para inviabilizar todo o sistema, implantar o "estado mínimo", submetendo-o à voracidade das ambições dos especuladores, e a transformação do Brasil em uma nação virtual.
Percebe-se sem maiores esforços todo um estratagema que poderá redundar na mais perversa das privatizações. Além de desviar, de cara, 2 bilhões de reais por ano dos cofres públicos para a "previdência complementar", aos quais se somam 12 bilhões em renúncias fiscais, o monstrengo concebido sob inspiração do FMI pretende pendurar-se no "fator previdenciário" para acabar com a paridade entre servidores públicos ativos e inativos. No mesmo veio, prostitui o caixa previdenciário, remetendo-o para o reino da especulação, enxertando-o na parafernália sob hegemonia externa do mercado financeiro.
Não é por acaso que o novo governo destruiu seus prospectos de campanha para eleger como de urgência urgentíssima a "reforma" que obstruía quando estava na oposição. Há motivos inconfessáveis nesse acelerador. Também não é por acaso que a maior rede de TV do País usa o seu jornal de maior audiência para envenenar a opinião pública com números ardilosamente manipulados, como se os servidores públicos, civis e militares, fossem uma súcia de "silveirinhas".
Essa articulação orquestrada é o maior estelionato teleológico já concebido, afrontando valores éticos comezinhos, direitos indiscutíveis e gerando um constrangimento irreparável para toda uma categoria de alta responsabilidade social.
Estigmatizar o Ministério Público e o Judiciário como píncaros dos marajás; fazer comparações boçais, como dizer que "estão transferindo a renda dos pobres para os ricos" com a aposentadoria integral dos servidores, sem ter o mínimo de honestidade para informar que esses sofrem descontos sem teto e que isso, em si, já é uma mudança na natureza do contrato, é uma ignomínia imperdoável.
Como estamos vivendo o aborto de uma esperança, o presságio de uma rotundo fracasso, não me surpreenderá se o País, que apostou todas as suas expectativas num homem do povo, venha a cair num novo tipo de fascismo, sob a hegemonia do "mercado" banqueiro, com a ampla adesão das massas, num contexto de sadomasoquismo assumido. Nesse ambiente, o povo fica com os 50 reais do "Fome Zero", com algumas balinhas para mascar, enquanto o sistema financeiro internacional avança sobre todas as fontes de lucro, ditando o passo a passo da política econômica.
País se sujeita mais ao capital externo
A "previdência única" é porta do projeto de minimização e de desmoralização do Poder Público, o que equivale a dizer: é o primeiro tempo de um jogo que desmonta a própria espinha dorsal da nacionalidade, inserindo o País num mundo globalizado em que, em vez de nações, reinarão, num grande oligopólio, as empresas transnacionais.
Nesse desiderato, há uma grande ironia: quanto maior é a sustentabilidade popular de um governo, maior é sua tendência de servir à estratégia das elites.
A ditadura contava com as armas para implementar as políticas encomendadas por Washington, mas não se sentia inteiramente à vontade para avançar sobre as conquistas históricas do povo. Os governos civis que se seguiram desaguaram na redoma do neoliberalismo cristalizada nos 8 anos de FHC.
E quando se esperava a catarse política, o resgate da autodeterminação econômica, desejo de quem confiou a um operário sofrido o comando do País, o espectro da sujeição abriu-se mais ainda, envolvendo a maioria silenciosa no seu discurso atualizado.
Felizmente, há formadores de opinião que, mesmo não tendo acesso à mídia, têm difundido observações acuradas sobre os riscos a que estão levando o País, como Nação. Através do seu site (http://br.geocities.com/refazenda2001/falest.html), o economista e fiscal de rendas Otávio Mancini Soares, de Minas Gerais, produziu uma reflexão sobre a falência do Estado, enunciando sua trilha:
"Por que o Estado não vem cumprindo mais o seu papel? Quem o substitui? Quem se beneficia, além das populações alvo? E finalmente o último aspecto: quem se omite? É notório o enfraquecimento dos serviços públicos. O que funcionava anteriormente não opera mais ou funciona mal. Vimos a migração para a escola particular, o plano de saúde, as empresas de segurança, etc., etc. Parece que fomos assolados por um misto de corrupção e incompetência".
Antes, em 2000, a professora Ana Elizabete Mota, da Universidade Federal de Pernambuco, autora de "A cultura da crise e as tendências da seguridade social no Brasil", havia escrito ensaio, referido na minha última coluna, desmistificando a prosopopéia do esvaziamento do Estado através da privatização deliberada da Previdência.
Sob o título "A descoberta (im)prevista: Transformar servidores públicos em investidores financeiros", a professora Ana Elizabete demonstra que a reforma da previdência, "ao lado das medidas de ajuste macroeconômico, ocupa lugar de destaque na agenda das prescrições de cunho neoliberal sob a alegação da necessidade de adequação do modelo de seguridade pós-1988 à atual conjuntura econômica do País".
Ela destaca que "dessa discussão são suprimidas informações sobre a fragmentação das fontes de financiamento da seguridade social, o uso indevido dos recursos da previdência no saneamento das contas públicas, a sonegação das contribuições à previdência, dentre outros".
E chama a atenção para "o tratamento dispensado à questão previdenciária do funcionalismo público, qualificando-os de privilegiados e sanguessugas das contribuições dos trabalhadores da iniciativa privada, omitindo a responsabilidade do Estado para com os seus funcionários, subtraindo direitos constitucionais e imputando ao valor das aposentadorias e pensões dos servidores a causa do desequilíbrio das contas públicas.
Desta abordagem são suprimidas informações jurídicas e históricas que particularizam a condição do servidor público e qualificam o seu estatuto de funcionário do Estado, remunerados com recursos da União, seja durante sua atividade, seja na sua inatividade. Além do mais, como a mudança na previdência dos servidores está vinculada ao regime de trabalho, no caso, o Regime Jurídico Único, transforma-se a finalidade da questão - aposentadorias do servidor público - num meio para mudar a relação de trabalho e descaracterizar o fato de que - ativo ou inativo - ele não perde a sua condição de servidor público".
Alvo é a destruição da seguridade social
Ainda na denúncia do massacre dos servidores - com o que se fragiliza o Estado nacional - ela aponta: "Mais do que viabilizar a implementação de medidas que alteram o escopo da seguridade social brasileira inscrita na Constituição de 1988, o que está em discussão é o próprio significado sócio-político da proteção social no Brasil.
A nossa hipótese é de que o alvo desta ofensiva é a destruição da seguridade social como mecanismo distributivo em prol da criação de políticas sociais compensatórias e focalistas que deverão conviver com a mercantilização dos serviços sociais.
Sem que se possa imaginar as políticas de Seguridade Social longe da esfera da reprodução das relações sociais, o que fica evidente é uma ofensiva contra a responsabilidade pública do Estado na medida em que as necessidades sociais e coletivas dos trabalhadores transformam-se em demandas mercantis ou em objeto da solidariedade privada.
Por isso mesmo, pode-se apontar os processos de privatização e focalização como as estratégias centrais e mediadoras das mudanças em curso. Sua implementação revela a subordinação da esfera social aos objetivos macroeconômicos, demarcados pelos mecanismos de estabilização, propulsores da integração de cada país à ordem econômica internacional e cujas prescrições são a redução do déficit público, via corte de gastos sociais, a capitalização do setor privado prestador de serviços sociais rentáveis e a desregulamentação do mercado de trabalho.
É por isso mesmo que a seguridade social passa a ser discutida sob a égide da viabilidade financeira, da incompatibilidade do sistema de repartição simples com o crescimento demográfico e o aumento da expectativa de vida da população, da inadiável implantação do sistema de capitalização, da eficácia e/ou da incompatibilidade entre os sistemas de proteção social e as novas configurações do mundo do trabalho. Suas diretrizes são recriar os mecanismos de mercado na provisão de serviços sociais e/ou de repassar parte dos fundos públicos para a área privada, retendo na esfera pública apenas os programas voltados para os grupos vulneráveis".
Em maio de 2001, o Diap - Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar - alertava: "O governo tem muita pressa na aprovação da matéria (PLC 09/99, da aposentadoria complementar), cuja transformação em lei criará condições para a quebra da paridade de remuneração entre servidores ativos e inativos, para acabar com a integralidade da remuneração na aposentadoria e viabilizar a futura privatização da previdência do servidor público.
O interesse é tanto que, diante da reação dos servidores e do permanente questionamento sobre a importância e conveniência de aprovação do projeto, o governo resolveu ceder em alguns pontos, como forma de viabilizar a votação do texto na Câmara" .
Essas informações são parte de um trabalho escrito em plena era FHC. Todo o discurso da nova elite absorvia essa compreensão do caráter pernicioso da proposta. E, no entanto, parecem saídas da fornalha, agora... na nova era.

[Voltar]

www.guahyba.vet.br