Boatos sobre a reforma da previdência

A proposta governamental para a reforma previdenciária não foi oficialmente apresentada (talvez ainda nem tenha sido formulada) e toda a discussão sobre o assunto tem sido feita com base em informações oficiosas divulgadas pela imprensa. Desde meados do ano passado, os meios de comunicação vêm tratando a questão de uma maneira preocupante, apresentando o fim da aposentadoria integral do servidor público como urgência nacional e principal problema das contas públicas, além de fator impeditivo do desenvolvimento do País.
Na tentativa de posicionarmo-nos sobre esta questão, realizamos algumas análises preliminares sobre o atual sistema de contribuições previdenciárias. Tomamos como exemplo o caso (real) de um fiscal federal agropecuário ingresso no Ministério da Agricultura em abril de 2002 aos 25 anos de idade, percebendo vencimentos de R$2.408,80 (inclui a GDAFA de 35% até a primeira avaliação de desempenho). Ao final de 35 anos este colega reuniria as condições necessárias para a aposentadoria (60 anos de idade, 35 anos de contribuição, 10 anos no Serviço Público e 5 anos no exercício do cargo), fazendo jus a uma aposentadoria equivalente aos seu últimos vencimentos, da ordem de R$5.238,87 (considerando a GDAFA em 45%, média máxima admitida pelo sistema). Nos cálculos foram excluídos os adicionais de insalubridade, as funções gratificadas ou de confiança (que não se incorporam às aposentadorias, embora sejam computadas para efeito de contribuição previdenciária) e o adicional por tempo de serviço, que a partir de 1997 não é mais devido aos servidores públicos da União.
A hipótese considerada nesta simulação pressupôs a capitalização mensal dos valores descontados a título de contribuição previdenciária (11% sobre o vencimento bruto integral), como se aquele recurso tivesse sido aplicado em uma caderneta de poupança com rendimento mensal de 0,7%, em vez de recolhido aos cofres públicos.
Os vencimentos totais brutos após 35 anos, considerados os adicionais de férias, as gratificações natalinas, as promoções e ascensões funcionais atingiriam R$ 1.840.962,01, dos quais teriam sido descontados R$202.505,82 a título de contribuição previdenciária. Este total, se corrigido mensalmente a uma taxa de 0,7% mensais, resultaria num capital acumulado de R$1.016.254,77. Se calculássemos o rendimento sobre o capital previdenciário corrigido, aplicando a mesma taxa mensal de 0,7%, obteremos o valor de R$7.113,78, superior ao valor da aposentadoria devida a este colega, pelas regras atuais, de R$5.238,87. A relação entre o rendimento mensal do capital corrigido e o valor da aposentadoria integral nos leva ao índice de 1,35.
As conclusões são surpreendentes. Somente a contribuição do servidor (não considerada a parcela paga pela União Federal) seria suficiente para custear a aposentadoria integral, com sobra de 35% disponível para amortizar custos os operacionais do sistema. Uma vez que o desconto de 11% sobre o vencimento integral foi adotado apenas em 1994, caberia aqui questionar se tal simulação também seria válida para os servidores mais antigos. Pensando nisto, tivemos o cuidado de estimar, mediante cálculo atuarial, o capital previdenciário acumulado de servidores em atividade há 20 anos e o valor apurado se mostrou bastante semelhante ao valor esperado após os mesmos 20 anos de contribuição do colega recém ingresso.
Os desdobramentos destas conclusões devem ser analisados com muita cautela. Através da grande imprensa nacional, vários especialistas no assunto têm proposto a limitação das aposentadorias públicas e a instituição da previdência complementar como a solução do déficit previdenciário. Com base nos cálculos apresentados, a questão poderia ser colocada da seguinte forma: Se, ao aplicarmos os recursos previdenciários no sistema financeiro, podemos garantir o benefício da aposentadoria integral, por que insistir na previdência pública?
São vários os motivos: As contribuições previdenciárias dos servidores seriam direcionadas às instituições financeiras privadas praticamente a fundo perdido, a não ser que o colega viesse a falecer antes da aposentadoria - ocorrência felizmente rara entre os fiscais agropecuários. Ao final do período de contribuição, o pagamento da aposentadoria seria custeado, conforme já demonstrado, somente com os juros sobre o capital acumulado, capital este que, diga-se de passagem, jamais seria devolvido à sua fonte geradora (nós). É um excelente negócio! É a galinha dos ovos de diamante, segundo a brilhante imagem idealizada pelo colega José Christovam dos Santos. Não admira a vigorosa campanha na mídia nacional propondo a privatização como solução mágica para os desacertos da política previdenciária pública. Qual seria o interesse dos meios de comunicação ao insistirem invariavelmente na mesma solução para um problema mal equacionado? Por que alimentar a opinião pública com meias verdades, sem que os verdadeiros responsáveis pelo desequilíbrio das contas públicas sequer tenham sido identificados? Haveria convergência de interesses com o sistema financeiro destinatário destes recursos?
Algumas outras estimativas realizadas com base nos planos de previdência privada existentes no mercado não só confirmam a sustentabilidade de um sistema ao qual se contribua com 11% dos vencimentos integrais e somente com a contribuição do servidor, como resultam num capital acumulado ainda maior.
Porque, então, não direcionar os vultuosos recursos para programas sociais, como a redução do déficit habitacional, estimado em 6.000.000 de unidades, 80% delas nas classes inferiores de renda? Quantas casas populares podem ser construídas apenas com o capital previdenciário de um único fiscal agropecuário, por exemplo? A venda financiada destas unidades geraria renda suficiente para garantir a estabilidade do sistema, eo resultado final de um programa semelhante não seria um abstrato demonstrativo contábil de uma aplicação financeira, muitas vezes volátil, mas a edificação de coisas reais, como casas com gente morando nelas, solução concomitante para dois problemas distintos e de grande importância.
É evidente que, neste caso, teríamos que aprimorar o controle social da administração destes recursos, para impedir sua utilização fraudulenta ou desvios de finalidade, como os que ocorreram no passado (BNH, por exemplo). E, por tocar no assunto, o que aconteceria se a instituição financeira destinatária dos recursos quebrasse (vide CAPEMI e outros), já que administrações fraudulentas não são privilégio exclusivo de órgãos públicos? Certamente a própria União Federal seria chamada a pagar a conta para solucionar um, então, sério problema social, sem que qualquer centavo das contribuições desviadas tivesse entrado nos cofres públicos.
As mais recentes declarações das autoridades governamentais passam ao largo da questão dos direitos adquiridos ou presumidos, e o foco central da questão está sendo desviado para a questão da disponibilidade de recursos. Não se trata de discutir direitos, dizem, mas saber se haverá recursos para honrá-los. Diante disto, devemos questionar se a proposta da limitação das aposentadorias públicas pelo teto das aposentadorias privadas, lançada como um balão de ensaio na grande imprensa, será capaz de resolver o problema.
Consideremos, mais uma vez, o caso dos fiscais agropecuários: Durante os últimos vinte anos não houve concurso público para ingresso nesta carreira, ou nas carreiras que a originaram. A evolução da carreira, sem a necessária renovação do quadro, resultou num acúmulo de fiscais nos níveis finais de progressão funcional, que concentram 63% do total. Estima-se, anda, em mais de 1.000 o número de colegas que estarão em condições de requerer aposentadoria daqui a 2 anos, quando se encerra o período necessário para incorporação da GDAFA às aposentadorias. Aposentados ou não, a arrecadação sofrerá uma queda significativa (considerada a isenção da contribuição para os que tenham cumprido o tempo de contribuição), ao passo que a limitação do teto das aposentadorias seria muito pequena neste grupo, se considerado o direito adquirido pelo tempo de contribuição transcorrido.
Caso se aprove, mesmo a versão mais branda da reforma, que é a de limitar as aposentadorias dos servidores que ingressarem somente após sua promulgação, o grupo dos fiscais agropecuários se tornaria um componente altamente deficitário do sistema. A correspondente limitação nas contribuições reduziria em 60% a contribuição dos fiscais em nível inicial (28% do total) comprometendo a estabilidade financeira do sistema. De outra forma, se a limitação das aposentadorias atingisse todos os servidores da ativa, a arrecadação da contribuição dos servidores seria reduzida a 30% do que é hoje, fazendo com que o sistema enfrentasse problemas de caixa muito mais sérios que os atuais, gerando um resultado oposto ao que se pretende. Para concluir esta rápida análise, vale lembrar que as reduções nas aposentadorias somente devem surtir algum efeito significativo daqui a 15 anos, período no qual assistiríamos um crescimento vertiginoso no déficit das contas previdenciárias dos fiscais agropecuários. Os únicos beneficiários de tal reforma (adivinhem!) seriam as instituições financeiras, nacionais e estrangeiras, gestoras da previdência complementar.
O problema está mal equacionado, portanto. Não dispomos de informações seguras sobre a questão previdenciária como um todo, a ponto de contribuir pro-ativamente para a solução para o problema. Nossas investigações preliminares, todavia, baseadas em dados reais e concretos, nos permitem afirmar que os balões de ensaio lançados na mídia, carregando informações oficiosas sobre os possíveis rumos da reforma, não trariam a soluções para o déficit previdenciário, mas somente beneficiariam poderosos grupos de pressão, gerando um problema ainda maior no futuro.
A julgar por estes balões de ensaio, a reforma iria somente atingir a parcela de 20% dos servidores públicos que recebem salários acima de R$1.561,56, possível teto das aposentadorias públicas, grupo no qual se incluem militares, juizes, promotores e auditores fiscais do núcleo estratégico. São categorias de grande influência política, mas esta vantagem pode ser anulada se as ações em defesa de seus direitos forem adotadas na forma do salve-se-quem-puder, como algumas ações prematuras que assistimos recentemente. A questão deve ser analisada do ponto de vista do interesse público, para que não venha a ser colocada para a Sociedade como uma intragável questão corporativa.
Nos contatos que iniciamos com as entidades representativas de algumas categorias, propusemos a realização de uma campanha de esclarecimento nacional sobre importância do serviço público para nossa organização social. A União Federal gasta anualmente cerca de R$300.000.000,00 com salários, aposentadorias e pensões dos fiscais agropecuários, considerados como mero elemento de despesa na atual campanha de caracterização dos servidores públicos como um grupo de "privilegiados". Ignoram-se os resultados de nosso trabalho. Qual seria a expressão econômica das inúmeras infecções alimentares e acidentes por ingestão evitados nos produtos que inspecionamos (se fosse possível atribuir valores monetários para uma vida ou para a saúde dos consumidores)? Quanto representa, em divisas, a certificação da qualidade sanitária dos produtos nacionais exportáveis que efetuamos? Qual a economia resultante do controle do ingresso de pragas no País que realizamos em nossos postos de fronteira? Qual o significado econômico, no custo de produção agropecuária, da qualidade dos insumos que monitoramos? Ao final destas contas, a sociedade seria convenientemente informada de que os recursos alocados para o exercício da atividade dos profissionais desta carreira é muito mais um investimento de elevado retorno social e financeiro, do que propriamente um custo.
Finalmente, é importante ressaltar que não nascemos parte desta casta "privilegiada" chamada servidores públicos. Atingimos esta condição ao sermos escolhidos dentre os melhores colocados nos concursos públicos que realizamos, estendidos a todos os interessados que reuniam as condições exigidas em seus editais, que igualmente especificavam as vantagens do cargo. O salário pago nunca foi um atrativo, pelo contrário. Mas sempre houve a motivação de trabalhar exclusivamente pelo interesse coletivo (algo muito próximo aos nossos ideais juvenis de realização profissional), somada à estabilidade e a aposentadoria integral. Reduzindo os atrativos da carreira para os novos servidores, que espécie de seleção será feita para a ocupação futura destes cargos? Qual a qualidade devemos esperar dos serviços essenciais? Esta não é uma questão meramente corporativa, mas de interesse de toda a Sociedade.

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